César Aira tem um plano

Se você acha que os 84 livros que Gabriel Chalita já publicou são muitos é porque ainda não conhece o argentino César Aira. Ele tem — preparem-se — 103 romances, 15 livros de ensaios e duas peças teatrais. Sim, o cara já publicou 120 livros e vem mais por aí. Mas a maior diferença entre Chalita e Aira é que os livros do argentino são ótimos e os do brasileiro… bem, não posso opinar, nunca li nenhum.

César Aira nasceu (1949) e cresceu em Coronel Pringles, uma cidade de pouco mais de 20 mil almas localizada a 520 quilômetros de Buenos Aires. Em sua infância, a cidade era ainda menor, mas ele teve a sorte de ter tido bons professores e também de a cidade abrigar uma boa biblioteca pública. Leitor eclético e ávido, desde cedo entrou em contato com grandes nomes da literatura e filosofia.

Mudou-se para o pacato e nada glamuroso bairro de Flores, em Buenos Aires, em 1967 e mora lá até hoje. Como Direito era um dos cursos que não era oferecido em sua região, convenceu seus pais que iria estudar para ser advogado na capital argentina. Lá chegando, cursou Direito por apenas dois anos e transferiu sua matrícula para o curso de letras. Ele queria ir para Buenos Aires apenas para ficar mais perto das livrarias, bibliotecas, escritores, revistas, editoras, enfim, mais perto da literatura.

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Publicou seu primeiro romance, “Moreira”, em 1975. E, desde então, vem publicando em média dois livros por ano. Sua técnica consiste em escrever todos os dias, descansando nos finais de semana. Com isso, ele tem, em média, umas 300 páginas por ano. Como suas histórias são meticulosamente curtas (poucas passam das 200 páginas), ele consegue escrever dois livros por ano. Em seu perfil na revista Piauí, confessou que tem mais 40 obras já escritas e ainda inéditas.

Suas histórias são sempre lineares e de fácil assimilação, mas por trás da aparente simplicidade há todo um universo a ser desfrutado. A diversidade temática do autor é outro ponto positivo, com livros que se passam no século XIX (“Um acontecimento na vida do pintor viajante”), no início do século XX (“O vestido rosa”), na época da paridade entre o peso argentino e o dólar (“Os fantasmas”) ou quase nos dias de hoje (“A prova”). Além da diversidade de épocas, tem também variedade temática, com livros de ficção científica, mundo do crime, histórias familiares, fantásticas, relatos de viagens, fábulas e outros estilos.

Em todos eles, porém, há a marca do autor, uma tendência a filosofar sobre os temas que apresenta em suas histórias. Seu narrador, quase sempre em primeira pessoa, vai tecendo conjecturas metafísicas na medida em que a narrativa se desenrola, bem ao estilo ensaístico de outro hermano argentino, Ricardo Piglia. O próprio autor diz que seus livros são “brinquedos literários para adultos”. Na mosca.

O pulo do gato de Aira foi aproximar sábia e conscientemente sua obra literária dos happenings. Interessado em artes plásticas, Aira é autor de ensaios sobre o tema e não esconde sua admiração por Marcel Duchamp (um de seus livros, ainda sem tradução em PT/BR chama-se “Duchamp en México”). E, assim como o francês transformou objetos comuns em obras de arte — seus famosos ready made —, o escritor argentino transmuta seus livros em objetos artísticos.

Desde o início de sua carreira literária, ele vem publicando seus títulos por uma série de editoras minúsculas e independentes. Alguns deles saíram com uma tiragem de 50 exemplares numerados e assinados. Outros, também em número baixo, saíram em edições ilustradas. Há um plano por trás desse aparente caos. Fazendo isso, ele transforma seus livros em objetos raros, cobiçados, com primeiras edições valendo pequenas fortunas em sites como mercadolibre.com.ar. Além disso, espalhando suas obras em diversos locais, ele se faz presente e ausente ao mesmo tempo. Presente porque está em várias casas editoriais e ausente porque seus livros têm tiragens baixas e esgotam-se rapidamente.

(Como não é bobo, Aira também publica por grandes editoras multinacionais, com representações e vendas em todos os países de língua espanhola. Além disso, seus livros já foram traduzidos para 37 idiomas e hoje são vendidos nos EUA, Reino Unido, França, Alemanha, Itália, Rússia em outros).

Aqui no Brasil, Aira vem reproduzindo essa técnica de se fazer simultaneamente presente e ausente. Já foi traduzido e publicado por sete editoras. Três pequenas (Arte & Letra; Papéis Selvagens; Cultura e Barbárie), uma média (Iluminuras) e três grandes (Nova Fronteira, Rocco e Fósforo). E, sim, os livros publicados pelas pequenas casas editoriais estão esgotados, sendo possível comprá-los só em sebos… perpetuando a máquina engendrada pelo autor “ubíquo e ao mesmo tempo elusivo” — na feliz definição de Alejandro Chacoff na Piauí.

Neste primeiro semestre, a Fósforo está lançando quatro títulos de Aira, “O vestido rosa”, “A prova”, “Congresso de literatura” e “Atos de caridade”. É difícil apontar o melhor, mas meu voto vai para “O vestido rosa”. Em uma história iniciada na Argentina rural e envolta em matanças de indígenas no início do século XX, a narrativa acompanha a trajetória de um vestido de bebê ao longo de décadas. De tão bem feita e formosa, a peça de roupa sobrevive anos passando de mãos em mãos. O texto é confessadamente inspirado em um conto do nosso Guimarães Rosa, “O recado do morro”, presente no livro “Corpo de baile” (1956). E, sim, o “rosa” do vestido dialoga com o nome do autor),

Não é um plágio, mas outra obra com uma temática semelhante. No conto de Rosa, um recado é passado várias vezes a um mesmo personagem que só vai decifrar sua importância num momento crucial de sua vida. Já na história de Aira, o vestido é passado várias vezes para diversos personagens, mas somente um deles vai conferir o devido significado do objeto que vai se tornando mítico ao longo do tempo. Melhor parar por aqui, qualquer coisa mais que eu escreva, vai ser spoiler. Para terminar, resta-me dizer que Aira, ao lado de nomes como Haruki Murakami e Salman Rushdie, lidera as apostas para ganhar o Nobel. Seu plano está funcionando. Presente e ausente, ele conquista o mundo.

PS: O Gabriel Chalita (1969) é 20 anos mais novo que o César Aira (1949). Logo, dá ainda para o brasileiro ultrapassar o argentino em número de livros publicados. Vai, Chalita!

Serviço
César Aira

Links para comprar os livros ou os e-books. Preços variam entre as lojas e entre as edições.

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