Bela, debochada e do bar

Alerta: Este texto pode conter gatilhos, aborda temas como suicídio e transtornos mentais. Se você está passando por problemas, veja ao final onde buscar ajuda.

“Nada melhor do que vomitar com outra pessoa para ganhar intimidade”. Ainda que seja algo nojenta para alguns, a frase contém humor e sinceridade; duas características que definem Esther Greenwood, a protagonista de “A redoma de vidro”. Esther é a alter-ego da escritora americana Sylvia Plath (1932 – 1963). Mais conhecida como poeta, ela é, lado de Anne Sexton e Robert Lowell, uma das grandes expoentes da chamada “poesia confessional”. “A redoma de vidro”, um livro fortemente autobiográfico, é o seu único romance.

Narrado em primeira pessoa, Esther é uma jovem estudante de literatura de Boston que ganha uma bolsa para um estágio de dois meses em uma revista conceituada de Nova York. Estamos na década de 50, onde muitas mulheres sequer saíam de casa, mas Esther estuda, é jornalista e sonha em ser escritora. O início do livro é delicioso, muito ágil e divertido, no ritmo da prosa precisa e mente afiada de Esther/Sylvia. Com um senso de humor fino e inteligente, a narradora jamais apela, suas tiradas e comentários são debochados, mas elegantes. Esther faz amizade com outra garota que também tinha ganhado a mesma bolsa de estágio e ambas resolvem desbravar a noite nova-iorquina, fugindo dos eventos oficiais do programa em que estavam.

Em suas divagações sobre o passado, sabemos que Esther deixou em Boston um pretendente promissor, Buddy Willard, um estudante de medicina apaixonado por ela e que teria uma carreira sólida, sem sobressaltos. Simplesmente não está a fim do cara, acha que suas personalidades não são compatíveis. Esther é muito sensível e apaixonada por literatura, Buddy é pragmático demais para temas etéreos. Exemplo:

Agora, deitada na minha cama, imaginei Buddy perguntando, “Você sabe o que é um poema, Esther?”.

“Não, o quê?”, eu diria.

“Um grão de poeira.”

E então, quando ele estivesse sorrindo e começando a ficar orgulhoso, eu diria: “Os cadáveres que você retalha também são, assim como as pessoas que você acha que está curando. Eles são poeira da poeira. Pra mim um bom poema dura muito mais que cem dessas pessoas juntas”.

Como tudo o que é bom acaba, a agitada e proveitosa temporada de Esther Greenwood em NY chega ao fim e ela retorna à casa de sua mãe, num subúrbio perto de Boston. Aí o livro vira. Ela não é aprovada para um programa acadêmico que gostaria muito de cursar, começa a ter dúvidas sobre seu talento. À ansiedade somam-se o isolamento, uma autoinfligida pressão fortíssima e uma permanente sensação de não pertencimento em uma sociedade que lhe era hostil. Lembrem-se, na década de 50, o ideal de vida para as mulheres (casar e procriar) era ainda mais forte do que é hoje. A conjunção de fatores leva Esther a desenvolver um seríssimo quadro de depressão e ela cai num buraco escuro sem fim.

Assim como sua protagonista, a autora Sylvia Plath também lutou sua breve vida toda contra a depressão. E perdeu. Depois de algumas tentativas fracassadas, ela se matou de uma maneira que choca pela meticulosidade — queria dar fim à própria vida e proteger outras no mesmo ato. Ela enfiou a cabeça no forno e ligou o gás permanecendo lá até perder a consciência e morrer. Antes disso, teve o cuidado de vedar bem as janelas e os vãos da porta da cozinha para o gás não vazar; seus dois filhos pequenos dormiam num quarto próximo. Ela ainda teve o esmero de deixar um bilhete do lado de fora da porta da cozinha avisando para não acenderem a luz ao entrar, temia que uma explosão machucasse seus filhos. Sylvia Plath tinha 30 anos.

O livro “A redoma de vidro” saiu em janeiro de 1963 e Plath se matou pouco depois, em fevereiro do mesmo ano. Por causa do altíssimo teor autobiográfico, ainda hoje há debates sobre a obra ser ou não um adeus intencional, um grande bilhete suicida, uma espécie de justificativa para os que ficaram. O debate, na verdade, não tem importância alguma e tampouco muda um cisco dos fatos: Sylvia Plath foi vencida por uma doença dilacerante e o livro é brilhante, uma obra-prima dos bildungsroman (romance de formação). A frequente comparação com o “Apanhador no campo de centeio”, de J. D. Salinger, é indevida e redutora. O livro de Plath é muito superior, mas injustamente menos reconhecido.

Voltando à história, Esther sabe que está doente e quer se tratar. Assim, ela inicia um doloroso périplo por psiquiatras, hospitais e clínicas. Numa delas, passa por algumas sessões do brutal tratamento de choques elétricos na cabeça.

Então alguma coisa dobrou-se sobre mim e me dominou e me sacudiu como se o mundo estivesse acabando. Ouvi um guincho, iiii-ii-ii-ii-ii, o ar tomado por uma cintilação azulada, e a cada clarão algo me agitava e moía e eu achava que meus ossos se quebrariam e a seiva jorraria de mim como uma planta partida ao meio.

Fiquei me perguntando o que é que eu tinha feito de tão terrível.

(…)

— Como você está se sentindo?

— Tudo bem.

Era mentira, eu estava péssima.

Nesse período de busca por uma cura, ela mantém sua disposição suicida e seu bom-humor. Sim, as duas coisas, por mais incompatíveis que pareçam juntas, são bem comuns. Há muitos exemplos de comediantes depressivos e há ainda o caso paradigmático de David Foster Wallace, um escritor extremamente bem-humorado e irônico que também se matou por depressão. Mesmo sabendo disso tudo, é bem triste se deparar na internet com as imagens de Sylvia Plath. Na maioria das fotos, ela está sorrindo, aparentemente feliz e serena — justamente como na imagem que ilustra este texto. Ela está na praia com um com seus cabelos descoloridos (o tom original era castanho escuro) e numa pose para lá de descontraída, aparentemente muito à vontade com sua existência.

O trecho em que Esther narra sua malograda tentativa de se enforcar provoca risos amarelos, constrangidos, e suores frios. A protagonista não perde as pitadas de bom-humor nem quando narra um episódio tão violento como um enforcamento. O relato choca pela sinceridade absoluta e, por isso mesmo, assustadora.

Aquela manhã eu havia tentado me enforcar. Assim que minha mãe saiu para trabalhar, tirei o cordão de seda de seu roupão de banho amarelo e, sob a penumbra âmbar do quarto, fiz um nó que deslizava sobre o cordão. Demorei um tempo para conseguir, porque sempre fui péssima com nós e não tinha a menor ideia de como fazer um. Então comecei a procurar um lugar onde pendurar a corda. O problema é que a nossa casa tinha o tipo errado de teto. Era baixo, branco, liso, sem lustres ou vigas de madeira à vista.

Se o conteúdo da saga rumo ao inferno de Esther Greenwood já era muito autobiográfico, ganha ainda poderosas camadas metalinguísticas quando a protagonista resolve escrever um livro contando a própria história. Vejamos:

Uma ternura preencheu meu coração. Minha heroína seria eu, só que disfarçada. Ela se chamaria Elaine. Elaine. Contei as letras com meus dedos. Esther também tinha seis letras. Parecia um bom sinal.

(…)

Naquele ritmo eu escreveria no máximo uma página por dia.

Então percebi qual era o problema.

Eu precisava de experiência.

Como é que eu poderia escrever sobre a vida se nunca tivera um caso amoroso ou um filho ou vira alguém morrer?

Nesse ponto, o livro vira praticamente uma Matrioska, uma daquelas bonecas russas com uma versão menor de si mesmas dentro delas. Sylvia escreveu um livro em que se disfarça de Esther, que escreve um livro em que se disfarça de Elaine. Os limites entre ficção e realidade que já eram embaçados, ou até entrelaçados, se distorcem ainda mais. É o momento em que a autora e a personagem estão diante do mesmo espelho. Elas não são, evidentemente, as mesmas pessoas, mas viveram situações semelhantes, quando não idênticas, e ainda possuem pensamentos e características em comum.

Ah, e vocês devem ter notado que Sylvia, assim como Esther e Elaine, também tem seis letras. A obra da americana Sylvia Plath é bela e rica em tantas maneiras que é bem compreensível que desperte tamanha atenção mundo afora até hoje. Mais de 60 anos após sua publicação, ela ainda consegue dialogar com questões latentes em nossa sociedade, como o papel da mulher, o mito do ideal da dona de casa com a família perfeita e as aspirações profissionais de uma jovem talentosa. Sylvia Plath é muita treta.

Centro de Valorização da Vida (CVV)
Se estiver precisando de ajuda imediata, entre em contato com o Centro de Valorização da Vida (CVV), serviço gratuito de apoio emocional que disponibiliza atendimento 24 horas por dia. O contato pode ser feito por e-mail, pelo chat no site ou pelo telefone 188.

Canal Pode Falar
Iniciativa criada pelo Unicef para oferecer escuta para adolescentes e jovens de 13 a 24 anos. O contato com o Canal Pode Falar pode ser feito pelo WhatsApp, de segunda a sexta-feira, das 8h às 22h.

SUS
Os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) são unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) voltadas para o atendimento de pacientes com transtornos mentais. Há unidades específicas para crianças e adolescentes. Na cidade de São Paulo, são 33 Caps Infanto-juventis e é possível buscar os endereços das unidades nesta página.

Mapa da Saúde Mental
O site Mapa da Saúde Mental traz mapas com unidades de saúde e iniciativas gratuitas de atendimento psicológico presencial e online. Disponibiliza ainda materiais de orientação sobre transtornos mentais.

Serviço
A Redoma de Vidro, de Sylvia Plath  
Tradução de Chico Mattoso
Biblioteca Azul, 320 páginas

Links para comprar o livro ou o e-book. Preços variam entre as lojas e entre as edições.

Amazon
Livraria Cultura
Martins Fontes
Livraria da Vila
Livraria da Travessa
Estante Virtual

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