Marxismo e maconha na periferia de Porto Alegre

Pedro é um jovem magrelo que vive no precário bairro Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre. Como o próprio narrador nos conta, “Seus bisavós tinham sido pobres a vida inteira, seus avós tinham sido pobres a vida inteira, seus pais tinham sido pobres a vida inteira: até onde iria isso? Se era verdade que a riqueza, ou pelo menos uma vida digna, podia ser alcançada com muito trabalho e dedicação, então o que estava acontecendo? Ele tinha dado o azar de nascer numa família de grande tradição na vadiagem? Era essa a explicação para a pobreza em que vinha derramando-se seu sangue através dos tempos? Gerações e gerações de preguiçosos que mereceram as condições humilhantes em que nasceram e viveram? Não, claro que não. Todos os seus ancestrais tinham trabalhado muito ao longo da vida, tinham pertencido à classe social que mantinha a merda do país funcionando, e se sempre foram pobres, era porque devia haver alguma coisa errada…”

Inteligente e inconformado Pedro sente que está desperdiçando sua vida e rodando em falso. Ele quer mudar de vida. Mora com a mãe, empregada doméstica, e ambos trabalham muito e ganham pouco; têm pouquíssima chance de prosperar e terem uma vida melhor. Pedro então decide conciliar seu emprego de supridor (aqui em Sampa conhecemos essa profissão como repositor) no supermercado Fênix, na região central da capital gaúcha, com a venda de maconha. Safo, antes de iniciar suas vendas, ele consulta o traficante local, que dominava o tráfico de cocaína. Tinha medo de atravessar o negócio do trafica e queria sua aprovação para poder vender seus baseados sem correr o risco de ser assassinado.

No mercado, Pedro conhece Marques, outro jovem sem perspectivas e também supridor. Marques mora com a mulher Angélica, que está grávida. Eles engatam uma amizade e uma sociedade na venda de maconha. O livro e os negócios decolam quando eles deixam de vender apenas na periferia — com baseados a R$ 2,00 ou R$ 3,00 — e passam a comercializar cigarrinhos para os jovens de classe média de Porto Alegre, que pagavam R$ 20,00 ou até mais por cada unidade.

Alternando entre a linguagem culta e o uso  da oralidade informal (com direito a muitas gírias do Sul, inclusive o peculiar “bah”), o livro tem um ritmo crescente de adrenalina, muita ação, bom humor e violência. O carisma do protagonista Pedro é tão cativante que, sim, somos levados a torcer pelo sucesso de um traficante de maconha [adendo: defendo não só a descriminalização da Cannabis, como também a legalização]. E, em meio à narrativa das aventuras e desventuras de Pedro e Marques, o narrador vai emitindo suas opiniões e constatações sobre a brutal desigualdade presente em nossa sociedade. É aí que entra o marxismo. Um marxismo teórico, não prático. Pedro sabe e entende como é explorado, mas não quer a ditadura do proletariado, quer apenas uma vida digna.

“Sei lá, eu acho que o cara que mais influenciou o meu pensamento foi um filósofo alemão. O nome dele era Marx. Inclusive, todo esse lance que a gente conversa, os nego chama isso de marxismo, por causa dele, tá ligado? Ele foi o primeiro a ver o mundo do ponto de vista que eu te mostro quando a gente conversa: o ponto de vista que nos interessa, o ponto de vista que favorece o trabalhador, e não o explorador do trabalho.”

Por empirismo e por intuição, Pedro é crítico da meritocracia. Sabe que mesmo se ele trabalhar como um burro de carga, nunca vai ter uma vida confortável de classe-média. Oprimido pela pobreza, convivendo com a miséria, ele não quer a revolução marxista; apenas decide pegar um atalho vendendo maconha. Ele é leitor voraz e forma suas opiniões críticas a partir dos livros. Entende perfeitamente como o trabalho braçal — e muitas vezes desumano — feito pela galera que vive na periferia é, ao mesmo tempo, uma fantasia e uma forma de alienação. Fantasia porque a propaganda que a sociedade faz é que se alguém trabalhar duro (ou empreender), vai prosperar. E a alienação é o reflexo desse sonho impossível, essa busca que nunca se alcança. Extremamente mal remunerados e desvalorizados no Brasil, os subempregos apenas distanciam as pessoas do progresso. As periferias são máquinas de desumanização e ele não quer isso para o resto de sua vida.

O livro ganha camadas de complexidade ao sabermos que o autor, José Falero, mora na periferia de Porto Alegre e trabalhou como supridor num supermercado. Tem muita coisa de sua vida neste livro, mas ao invés de vender maconha para prosperar, Falero escreve — e muito bem. O livro já ganhou traduções para o inglês, alemão e espanhol e, dado o seu ritmo alucinante, não vou me espantar se a obra se transformar num filme ou numa série. Aliás, a cena da batalha final, com direito a um mapa de uma região periférica de Porto Alegre, é demais de cinematográfica, coisa fina.

Serviço
Os supridores, de José Falero
Editora Todavia, 304 páginas

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